terça-feira, 1 de setembro de 2009

Cota – «a cidade que traz vitórias»

Vejamos um pouco de como Georg Schurhammer descreve a cidade de Cota, para onde foi Fr. João. O seu nome completo era Jayawarhanokotte ou Jayawarhanapura – “a cidade que traz vitórias” – e fora edificada na segunda metade do século XIV. Foi destruída em tempo de Fr. João.

Cota, a residência de Bhuvaneca Báhu, estava terra adentro, a duas léguas a sudeste da actual capital do país, Colombo. Tinha a forma de um largo triângulo cujo vértice ficava a norte. Protegida por uma cidadela, Cota estava envolvida por uma muralha circular de enormes blocos de sílica vermelha, reforçada nas entradas, chamadas passos, por torres e bastiões; o seu perímetro correspondia a hora e meia de caminho, e a este e oeste estava rodeada de lagos e canais que era preciso passar em botes, sobretudo porque o construtor da cidade no século XIV tinha povoado as águas de crocodilos. … Ceilão era a Taprobana grega e romana que Camões menciona n'Os Lusíadas

A Rua Real e o Palácio Real

A rectíssima Rua Real que atravessava a cidade de sul a norte estava orlada de ambos os lados por casas e palácios bem construídos, com varandas nos pisos altos, ricamente pintadas
com figuras de deuses dos diversos espíritos do ar; o rei Parakrama Báhu VI, depois do saque de Cota pelos chineses em 1408, fizera-a ressurgir com esplendor. Canalizações de argila derivavam para oeste a água da chuva da rua, que tinha 40 varas de largo, de sorte que nas procissões solenes, quando o soberano cavalgava por ela sobre o seu magnífico elefante, adornado com os 64 ornamentos usuais, incluída a alta e pontiaguda coroa de jóias, e acompanhado de 4 divisões do seu exército, podiam ir nela os elefantes peito a peito um junto ao outro. A nordeste da cidade, elevava-se, junto à muralha, o Pas Mal Paia, faustoso Palácio Real de cinco pisos com as paredes revestidas de selenita azul rutilante. As colunas graníticas e os seus capitéis, e também a porta de pedra e os caixilhos das janelas, estavam decorados com esculturas artísticas e figuras de leões, pavões e grinaldas de loto. Um arco triunfal de pedra, alçando-se das fauces de um
makara ou monstro fabuloso, adornava o acesso ao trono, de muitos degraus e talhado em marfim, do salão de audiências. Do áureo vértice do palácio fulgurava à luz do sol um grande rubi.
A poucos metros para o norte do palácio, achava-se o terraço da coroação, pavimentado de granito, que descia a um tanque de banho com paredes de pedra.


O Templo do Dente de Buda

Junto dele, na Rua Real e próxima da muralha, ficava a Dalada Maligawa, o pagode do Palácio com a veneradíssima relíquia do Dente de Buda, templo principal da cidade. Tinha três pisos de altura e estava construído em forma de abrupta pirâmide com sua cúspide de ouro puro, adornada de campâ­nulas que o vento fazia soar, e sustida por pilastras de granito primorosamente cinzeladas. Para aquela relíquia, venerada em todo Ceilão e que tinha sido salva através de todas as guerras e perseguições, Parakrama Báhu VI tinha feito preparar, por 7.000 peças de prata, quatro relicários, metidos um no outro, todos de ouro e adornados de preciosa joalharia; e na procissão principal do ano era levada solenemente pelas ruas da cidade. Por meio de pias fundações tinha procurado o mesmo rei que nos quatro templos hindus da muralha da cidade se desse sem interrupção culto aos deuses protectores, com tímbales e pífaros, danças e cânticos. Tinha legado também aos monges budistas pingues rendas e construído um mosteiro e um salão sagrado onde os noviços, em determinados tempos e na presença da multidão de monges, recebiam o hábito amarelo e eram admitidos à ordem; e ao Templo do Dente adjudicou por todo o reino rendas rústicas e direitos aduaneiros dos portos.

Para grande humilhação dos budistas singaleses, mas também dos de vários países continentais, um dia os portugueses, em cerimónia pública, destruíram o Dente de Buda. O resultado foi que em breve se descobriram vários dentes do mesmo Buda.
Para evitar a destruição, o rei do Pegu chegou a oferecer uma avultadíssima quantia de dinheiro.

O debate das sete perguntas

Em Cota, quando aí chegou oela primeira vez, esperavam Fr. João boas palavras, desafogada situação económica, mas também a decidida recusa do rei à conversão. Fr. João porém não desistiu à primeira; sentiu-se ofendido, mas foi à luta: instou com o imperador.
Começou por propor uma disputa pública sobre temática religiosa, que era uma prática já ensaiada noutras paragens. Ele mesmo sugere os temas em forma de perguntas:
«Que é Deus? Que é o Paraíso? Que é um anjo? Que é um santo? Que é o Diabo? Que é a virtude? Que é o vício e o pecado?»
Gerou-se a confusão nas filas dos adversários, discrepando profundamente as opiniões dos hinduístas e dos budistas. Os singaleses ficam indignados por nem os seus sábios nem o seu rei serem capazes de defender dignamente a religião do país. O imperador acabou por impor o fim da disputa.
Fr. João teve então uma saída mais radical: estava disposto a meter-se com um dos monges principais ou dos sacerdotes brâmanes numa fogueira ou num lago cheio de crocodilos, para que fosse o próprio Deus a mostrar qual a autêntica religião.
Buvaneca Báhu recusou a proposta, aliás sensatamente.
Em conclusão, o Rei não renegaria a fé em que foi educado e em que viveram e morreram os seus antepassados (recorde-se que a grandeza de Cota devia muito ao Templo do Dente de Buda; em caso da sua conversão ao cristianismo, tudo isso deixaria de fazer sentido…) Fr. João, porém, poderá pregar livremente o cristianismo entre os seus súbditos.
Mas isto eram pouco mais que boas palavras.
Moderno Templo do Dente de Buda em Cande, Sri Lanka

O nosso animoso frade

Veja-se agora a confirmação do que acabo de narrar num pequeno texto de Manuel Faria e Sousa, conhecido polígrafo admirador de Camões: ele escreveu-o, em finais do séc. XVI ou princípios do seguinte, na sua Ásia Portuguesa:

Nos dias passados, tinha o imperador de Ceilão pedido pelos seus embaixadores ao rei D. João III que lhe enviasse alguns religiosos de S. Francisco, para o instruírem na religião católica. Sendo-lhe enviados, arrependeu-se do oferecido. Encontrava-se este ano na sua corte o padre Frei João de Vila do Conde, que tendo várias discussões com os seus sacerdotes os brâ­manes, cada uma em defesa da sua religião, eles ficaram vencidos; todavia, não confessando a derrota, quis o padre, arrebatado por aquela fé que faz mudar os mon­tes, parar os rios e gelar as chamas, convencer com a obra como com o argumento.
Ofereceu-lhes que ele e um deles se lançassem ou a um rio que tinham perto, povoado de abundantes crocodilos, ou a uma poderosa fogueira que depois se poderia acender, e que fosse melhor a lei a daquele que saísse ileso de qualquer destes perigos. Não aceitaram a condição, porque a infidelidade gentílica ou herética, como só nega o verdadeiro com intenção de não inco­modar o corpo e o espírito, a primeira coisa de que foge é de os arriscar. E deixam-se acreditar que, negando-se a tudo, ficam com alguma vitória. Com esta ficou o nosso animoso frade, não sem fruto, por­que depois ele e os seus companheiros cristianizaram D. João Pária Pandar
(Darmapala Pandarim), rei de Cota, na própria ilha.

Fragmento duma carta de Fr. João de Vila do Conde ao vice-rei D. João de Castro (1547)

D. João de Castro, com Afonso de Albuquerque, constituiu sem dúvida o par dos mais importantes vice-reis da Índia. Temível guerreiro, cientista, era um estadista de honestidade a toda a prova. Muito provavelmente o prestígio da sua extraordinária acção terá sido um estímulo determinante e próximo para Camões escrever o poema épico. Fr. João conheceu-o pessoalmente. Veja-se um pouco desta carta que lhe dirigiu em 1547:

Senhor:
Já de Goa e Cochim escrevi a Vossa Senhoria o bom aviamento que vossos oficiais nos deram, e o mesmo fez Aires de Figueiredo nesta Pescaria. Bem vejo que estes bons despachos se fazem, por conhecerem vossa tão santa vontade, e tão determinada, para por em caminho e em vosso tempo desta obra da cristandade, o que até agora não teve. Diz Santo Agostinho que Nosso Senhor olha o miolo das intenções e segundo ele faz connosco e quanto podemos alcançar de Vossa Senhoria nessa parte, e dar favor por todas as vias a esta obra. E como Nosso Senhor isto dele sabe, moveu nesta Índia em vosso tempo nesta parte coisas, que desde que ela é descoberta se não moveram.
Uma é el-rei de Cande fazer-se cristão e o de Tanor mover-se para isso. ... Eu espero em Deus de ele dar a Vossa Senhoria muita tranquilidade e de paz de ganhar muitos tesouros nesta obra espirituais, e o que os passados levaram em cofres tão mal guardados, do que tampouco se aproveitarão, ponha Vossa Senhoria em aquele lugar seguro, donde o olho não viu nem a orelha ouviu, ate as coisas que Deus tem aparelhadas aos que o amam; o qual tenha por bem de acrescentar a vida e estado a Vossa Senhoria, a seu serviço.
Deste Calepatanão, aos vinte e dois dias de Abril de 1547.

Os dois reis mencionados, de Cande (no Ceilão) e de Tanor (na costa do Malabar), receberam de facto o baptismo, mas ambos apostataram. O de Tanor vem mencionado n'Os Lusíadas.

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