terça-feira, 1 de setembro de 2009

UM VILA-CONDENSE NO CEILÃO

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Em 1549, Fr. João de Vila do Conde estava no Oriente, aonde tinha chegado mais de cinco anos antes. A sua vida tinha sido muito difícil e poderia andar já perto dos sessenta anos. Mas decide então enfrentar as dificuldades duma viagem a Portugal e regresso ao Oriente, para esclarecer o Rei em pessoa do que lá se passava e de que muitas vezes os canais oficiais não davam notícia rigorosa.
Ele era uma figura importante e tinha ido para o Ceilão na sequência de um entendimento entre D. João III e o imperador desse país. Mas ainda assim trouxe cartas de pessoas bem ilustres que o recomendavam ao Rei.
S. Francisco Xavier, na sua, tece um elogio generoso à acção de Fr. João de Vila do Conde:
Porta manuelina do convento onde Fr. João eventualmente professou.

Deve-lhe (a Fr. João de Vila de Conde) dar V. A. muitos agradecimentos pelos muitos trabalhos que nestas partes da Índia tem tomado por serviço de Deus e descargo da consciência de V. A.; porque os trabalhos corporais que o Padre Frei João tem levado nestas partes da Índia, ainda que sejam muitos e grandes e contínuos, em comparação dos trabalhos do espírito, em ver o mau tratamento que os capitães e feitores fazem aos que novamente se convertem, havendo-os eles de ajudar, são incomportáveis, e quase um género de martírio ter paciência em ver destruir o que com tanto trabalho tem ganho.

O Bispo de Goa reconhece que Fr. João é um "bom homem e virtuoso religioso e tem bons desejos", mas nas entrelinhas parece assinalar-lhe certa dose de impaciência:

Três anos há que detenho, com o melhor modo e palavras que posso, ao padre Frei João de Vila da Conde, que para isso viemos a estas partes, para levar trabalhos e desgostos por amor de Deus, e por honra e favor de sua fé; este ano determinou de se ir; diz que vai a dar-lhe conta das coisas de Ceilão, para lhe por Vossa Alteza remédio; são coisas algumas delas que o tempo não dá jazigo às cumprir todas como se requer, por ser terra de guerras e doutras qualidades que lá em Portugal não se alcança tanto, e para esta musica da conversão dos infiéis há mister muita constância, e prudência da qual carecemos alguns; ouça-o Vossa Alteza, por amor de Deus ... Pergunte-lhe as coisas de cá, e seja recebido com gasalhado; é bom homem e virtuoso religioso e tem bons desejos.
Igreja do Convento de Santa Clara, que ficava a poucas dezenas de passos do convento franciscano.

Fr. Diego Bermudez, talvez um dominicano, vê em Fr. João "um homem de grande virtude e fervoroso":

O Pe. Fr. João de Vila do Conde é um homem de grande virtude e fervoroso; por amor às almas carregou com muitas dificuldades e quer agora carregar com outras maiores. Pois vê que os problemas do Cristianismo encontram aqui muito pouco favor, e especialmente os tão importantes da cristandade do Ceilão. Tinha começado muito bem; para honra de Deus e com seu favor e o de Vossa Alteza, foram converti­das tantas almas e podia-se esperar que, dado o seu incremento, brevemente toda aquela ilha se faria cristã; mas esta esperança não se cumpriu por causa dos nossos pecados. Ao contrário, tudo se desmorona e extingue; e isto não por culpa de Vossa Alteza, senão pela de quem se encontra aqui. Pois somente vêm para fazer dinheiro; assim entregam as suas almas e toda a Ceilão ao diabo por um tostão.
As inimizades entre o imperado do Ceilão e o seu irmão Maiadune

O Ceilão – hoje diz-se Sri Lanka – é uma ilha com metade da superfície de Portugal e o dobro da população. No séc. XVI, quando por lá missionou Fr. João, estava dividida em vários reinos: Cota, Sitavaca, Cande, Jafna, Sete Corlas… Estes reis conviviam pessimamente uns com os outros, pelo que as guerras eram muito vulgares. O rei de Cota tinha certa supremacia sobre os restantes – daí chamar-se-lhe imperador – em parte devido a localizar-se na sua grandiosa capital o célebre templo do Dente de Buda, em parte por possuir o reino com terras mais produtivas.
Para sabermos o que fazia por lá Fr. João, temos de recuar na história da ilha.
Em 1521, em Cota, houve um regicídio: os filhos do imperador assassinaram o pai. Eram eles Buvaneca Báhu, que ficou a reinar em Cota, em lugar do pai morto; Maiadune, que herdou Sitavaca; e um terceiro irmão, que reinou em Rayi­gama.
Maiadune, ambicioso e com mais capacidades bélicas, tentará até ao fim da vida alargar os seus domínios à custa do reino de Buvaneca Báhu. Aliás, não tendo este filho varão herdeiro, Maiadune considera que lhe cabe a ele herdar o trono imperial. Como se isso não bastasse, arranja um aliado de peso, o samorim de Calecut.
Neste contexto, aí por 1540, Buvaneca Báhu decide fazer-se suceder pelo neto, o que enfureceu Maiadune. Buvaneca tenta então obter cobertura do rei português para os seus planos. Fr. João vai-se tornar uma peça deste jogo.
Sobre Fr. João de Vila do Conde, escreveram cronistas antigos portugueses e escreveram, modernamente, alguns estudiosos, entre eles o jesuíta alemão Georg Schurhammer ao redigir a monumental biografia de S. Francisco Xavier, o padre francês Léon Bourdon e o franciscano português Fr. Félix Lopes.
Mapa do Ceilão, actual Sri Lanka
Carta de D. João III sobre a sucessão do rei de Ceilão

Ouçamos agora alguns extractos duma «Carta de D. João III sobre a sucessão do rei de Ceilão», onde se contêm os factos que motivaram a ida de Fr. João de Vila do Conde para aquela ilha. Data de 1543. O nome de Buvaneca Báhu escreve-se aqui como Bu­haneguabaho, o do seu neto Darmapala Pandarim como Tãomapala Pandarim.

Dom João, etc. a quantos esta minha carta virem faço saber que Bu­haneguabaho, Rei de Ceilão, me enviou dizer por Pandita seu embaixador que pela grande confiança que tinha de Tãomapala Pandarim seu neto, filho de sua filha, que depois de seus dias saberia bem reger e governar seu Reino e manteria seus súbditos e vassalos em toda justiça e guardaria inteiramente a verdadeira amizade que entre nós há, como ele muito desejava que todos seus herdeiros e sucessores o fizessem, me pedia que houvesse por bem que, pelo seu falecimento, o dito seu neto o herdasse e sucedesse no dito Reino. E … por muito folgar de nisso comprazer ao dito Rei de Ceilão assim pela muito boa vontade que lhe te­nho como pelas boas obras que ele sempre folga de fazer em todas as coisas que se oferecem de meu serviço e por esperar do dito seu neto que sem­pre assim o fará e guardará e conservará esta nossa amizade e me conhecerá e merecerá todas as boas obras que lhe fizer, e por outros justos respeitos que me a isso movem, por esta presente carta tenho por bem e me apraz que por falecimento do dito Buhanegabaho, Rei de Ceilão, ele dito Tammapala Pan­darim, seu neto, herde e suceda no dito Reino; … porém o notifico assim ao meu capitão-mor e governador das partes da Índia, vedor de minha fazenda e a todos e quais quer outros meus capitais oficiais e pessoas a que esta minha carta for mostrada e o conhecimento dela pertencer e lhe mando que hajam ao dito Tammapalla Pandarim por verdadeiro e legitimo herdeiro do dito Reino de Ceilão...
Dada em a Vila de Almeirim a XII dias de Março: Pêro Fernandes a fez.
Ano do nascimento de Nosso Se­nhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e quarenta e três.


A manobra ideada por Buvaneca Báhu consistiu em dar a crer ao Rei português que estaria disposto a receber o baptismo e que proporcionaria facilidades à missionação cristã do seu reino. Isto, logo se concluiu, torná-lo-ia um precioso aliado. Sugeria mesmo o envio dum grupo de "franciscanos sábios". Coube a Fr. João chefiar o pequeno grupo de seis franciscanos que então se dirigiram para a ilha.

Por estar com problemas com a palavra-passe, respondo aqui ao comentário:
Eu penso que se devia dar preferência à versão usada no século XVI, que creio que era Cota. 

Cota – «a cidade que traz vitórias»

Vejamos um pouco de como Georg Schurhammer descreve a cidade de Cota, para onde foi Fr. João. O seu nome completo era Jayawarhanokotte ou Jayawarhanapura – “a cidade que traz vitórias” – e fora edificada na segunda metade do século XIV. Foi destruída em tempo de Fr. João.

Cota, a residência de Bhuvaneca Báhu, estava terra adentro, a duas léguas a sudeste da actual capital do país, Colombo. Tinha a forma de um largo triângulo cujo vértice ficava a norte. Protegida por uma cidadela, Cota estava envolvida por uma muralha circular de enormes blocos de sílica vermelha, reforçada nas entradas, chamadas passos, por torres e bastiões; o seu perímetro correspondia a hora e meia de caminho, e a este e oeste estava rodeada de lagos e canais que era preciso passar em botes, sobretudo porque o construtor da cidade no século XIV tinha povoado as águas de crocodilos. … Ceilão era a Taprobana grega e romana que Camões menciona n'Os Lusíadas

A Rua Real e o Palácio Real

A rectíssima Rua Real que atravessava a cidade de sul a norte estava orlada de ambos os lados por casas e palácios bem construídos, com varandas nos pisos altos, ricamente pintadas
com figuras de deuses dos diversos espíritos do ar; o rei Parakrama Báhu VI, depois do saque de Cota pelos chineses em 1408, fizera-a ressurgir com esplendor. Canalizações de argila derivavam para oeste a água da chuva da rua, que tinha 40 varas de largo, de sorte que nas procissões solenes, quando o soberano cavalgava por ela sobre o seu magnífico elefante, adornado com os 64 ornamentos usuais, incluída a alta e pontiaguda coroa de jóias, e acompanhado de 4 divisões do seu exército, podiam ir nela os elefantes peito a peito um junto ao outro. A nordeste da cidade, elevava-se, junto à muralha, o Pas Mal Paia, faustoso Palácio Real de cinco pisos com as paredes revestidas de selenita azul rutilante. As colunas graníticas e os seus capitéis, e também a porta de pedra e os caixilhos das janelas, estavam decorados com esculturas artísticas e figuras de leões, pavões e grinaldas de loto. Um arco triunfal de pedra, alçando-se das fauces de um
makara ou monstro fabuloso, adornava o acesso ao trono, de muitos degraus e talhado em marfim, do salão de audiências. Do áureo vértice do palácio fulgurava à luz do sol um grande rubi.
A poucos metros para o norte do palácio, achava-se o terraço da coroação, pavimentado de granito, que descia a um tanque de banho com paredes de pedra.


O Templo do Dente de Buda

Junto dele, na Rua Real e próxima da muralha, ficava a Dalada Maligawa, o pagode do Palácio com a veneradíssima relíquia do Dente de Buda, templo principal da cidade. Tinha três pisos de altura e estava construído em forma de abrupta pirâmide com sua cúspide de ouro puro, adornada de campâ­nulas que o vento fazia soar, e sustida por pilastras de granito primorosamente cinzeladas. Para aquela relíquia, venerada em todo Ceilão e que tinha sido salva através de todas as guerras e perseguições, Parakrama Báhu VI tinha feito preparar, por 7.000 peças de prata, quatro relicários, metidos um no outro, todos de ouro e adornados de preciosa joalharia; e na procissão principal do ano era levada solenemente pelas ruas da cidade. Por meio de pias fundações tinha procurado o mesmo rei que nos quatro templos hindus da muralha da cidade se desse sem interrupção culto aos deuses protectores, com tímbales e pífaros, danças e cânticos. Tinha legado também aos monges budistas pingues rendas e construído um mosteiro e um salão sagrado onde os noviços, em determinados tempos e na presença da multidão de monges, recebiam o hábito amarelo e eram admitidos à ordem; e ao Templo do Dente adjudicou por todo o reino rendas rústicas e direitos aduaneiros dos portos.

Para grande humilhação dos budistas singaleses, mas também dos de vários países continentais, um dia os portugueses, em cerimónia pública, destruíram o Dente de Buda. O resultado foi que em breve se descobriram vários dentes do mesmo Buda.
Para evitar a destruição, o rei do Pegu chegou a oferecer uma avultadíssima quantia de dinheiro.

O debate das sete perguntas

Em Cota, quando aí chegou oela primeira vez, esperavam Fr. João boas palavras, desafogada situação económica, mas também a decidida recusa do rei à conversão. Fr. João porém não desistiu à primeira; sentiu-se ofendido, mas foi à luta: instou com o imperador.
Começou por propor uma disputa pública sobre temática religiosa, que era uma prática já ensaiada noutras paragens. Ele mesmo sugere os temas em forma de perguntas:
«Que é Deus? Que é o Paraíso? Que é um anjo? Que é um santo? Que é o Diabo? Que é a virtude? Que é o vício e o pecado?»
Gerou-se a confusão nas filas dos adversários, discrepando profundamente as opiniões dos hinduístas e dos budistas. Os singaleses ficam indignados por nem os seus sábios nem o seu rei serem capazes de defender dignamente a religião do país. O imperador acabou por impor o fim da disputa.
Fr. João teve então uma saída mais radical: estava disposto a meter-se com um dos monges principais ou dos sacerdotes brâmanes numa fogueira ou num lago cheio de crocodilos, para que fosse o próprio Deus a mostrar qual a autêntica religião.
Buvaneca Báhu recusou a proposta, aliás sensatamente.
Em conclusão, o Rei não renegaria a fé em que foi educado e em que viveram e morreram os seus antepassados (recorde-se que a grandeza de Cota devia muito ao Templo do Dente de Buda; em caso da sua conversão ao cristianismo, tudo isso deixaria de fazer sentido…) Fr. João, porém, poderá pregar livremente o cristianismo entre os seus súbditos.
Mas isto eram pouco mais que boas palavras.
Moderno Templo do Dente de Buda em Cande, Sri Lanka

O nosso animoso frade

Veja-se agora a confirmação do que acabo de narrar num pequeno texto de Manuel Faria e Sousa, conhecido polígrafo admirador de Camões: ele escreveu-o, em finais do séc. XVI ou princípios do seguinte, na sua Ásia Portuguesa:

Nos dias passados, tinha o imperador de Ceilão pedido pelos seus embaixadores ao rei D. João III que lhe enviasse alguns religiosos de S. Francisco, para o instruírem na religião católica. Sendo-lhe enviados, arrependeu-se do oferecido. Encontrava-se este ano na sua corte o padre Frei João de Vila do Conde, que tendo várias discussões com os seus sacerdotes os brâ­manes, cada uma em defesa da sua religião, eles ficaram vencidos; todavia, não confessando a derrota, quis o padre, arrebatado por aquela fé que faz mudar os mon­tes, parar os rios e gelar as chamas, convencer com a obra como com o argumento.
Ofereceu-lhes que ele e um deles se lançassem ou a um rio que tinham perto, povoado de abundantes crocodilos, ou a uma poderosa fogueira que depois se poderia acender, e que fosse melhor a lei a daquele que saísse ileso de qualquer destes perigos. Não aceitaram a condição, porque a infidelidade gentílica ou herética, como só nega o verdadeiro com intenção de não inco­modar o corpo e o espírito, a primeira coisa de que foge é de os arriscar. E deixam-se acreditar que, negando-se a tudo, ficam com alguma vitória. Com esta ficou o nosso animoso frade, não sem fruto, por­que depois ele e os seus companheiros cristianizaram D. João Pária Pandar
(Darmapala Pandarim), rei de Cota, na própria ilha.

Fragmento duma carta de Fr. João de Vila do Conde ao vice-rei D. João de Castro (1547)

D. João de Castro, com Afonso de Albuquerque, constituiu sem dúvida o par dos mais importantes vice-reis da Índia. Temível guerreiro, cientista, era um estadista de honestidade a toda a prova. Muito provavelmente o prestígio da sua extraordinária acção terá sido um estímulo determinante e próximo para Camões escrever o poema épico. Fr. João conheceu-o pessoalmente. Veja-se um pouco desta carta que lhe dirigiu em 1547:

Senhor:
Já de Goa e Cochim escrevi a Vossa Senhoria o bom aviamento que vossos oficiais nos deram, e o mesmo fez Aires de Figueiredo nesta Pescaria. Bem vejo que estes bons despachos se fazem, por conhecerem vossa tão santa vontade, e tão determinada, para por em caminho e em vosso tempo desta obra da cristandade, o que até agora não teve. Diz Santo Agostinho que Nosso Senhor olha o miolo das intenções e segundo ele faz connosco e quanto podemos alcançar de Vossa Senhoria nessa parte, e dar favor por todas as vias a esta obra. E como Nosso Senhor isto dele sabe, moveu nesta Índia em vosso tempo nesta parte coisas, que desde que ela é descoberta se não moveram.
Uma é el-rei de Cande fazer-se cristão e o de Tanor mover-se para isso. ... Eu espero em Deus de ele dar a Vossa Senhoria muita tranquilidade e de paz de ganhar muitos tesouros nesta obra espirituais, e o que os passados levaram em cofres tão mal guardados, do que tampouco se aproveitarão, ponha Vossa Senhoria em aquele lugar seguro, donde o olho não viu nem a orelha ouviu, ate as coisas que Deus tem aparelhadas aos que o amam; o qual tenha por bem de acrescentar a vida e estado a Vossa Senhoria, a seu serviço.
Deste Calepatanão, aos vinte e dois dias de Abril de 1547.

Os dois reis mencionados, de Cande (no Ceilão) e de Tanor (na costa do Malabar), receberam de facto o baptismo, mas ambos apostataram. O de Tanor vem mencionado n'Os Lusíadas.

Na morte de D. João de Castro

D. João de Castro morreu 6 de Junho de 1548. Assistiram-no nos derradeiros momentos quatro religiosos, entre eles S. Francisco Xavier e Fr. João de Vila de Conde. Foram então encarregados de dirigir ao Rei esta carta, que contém as últimas vontades do defunto:

Documento assinado pelos religiosos S. Francisco Xavier e Fr. João de Vila do Conde, entre outros, e que contém as últimas vontades do grande vice-rei D. João de Castro

Senhor
Estando o vice-rei Dom João de Castro para falecer, nos disse a nós todos quatro, Mestre Pedro Vigário-geral, frei António custodio, Mestre Francisco da Companhia de Jesus, frei João de Vila de Conde, de palavra, que fizéssemos esta carta a V. A. em que lhe fizéssemos as lembranças seguintes em seu nome, por ele já estar em tempo para o não poder fazer:
D. João de CastroPrimeiramente lembrava os muitos e grandes serviços que fez Manuel de Sousa de Sepúlveda a V. A. na batalha de Diu e no fazer da fortaleza, onde deu mesa a muitos homens e teve cargo de fazer o baluarte de São Tomé, onde levou muito trabalho; e assim em todas as outras armadas o ajudou muito e acompanhou. Pelo que pedia a V. A. haja por seu serviço de lhe fazer muita mercê. E se V. A. tomou algum desprazer dele por não aceitar a fortaleza de Diu que lhe pedia, pela hora em que estava lhe perdoasse.
E assim nos encomendou Francisco da Cunha que o lembrássemos a V. A. o qual também servia mui bem em Diu, assim na batalha como no fazer das obras da fortaleza, e deu de comer a muitos homens, e proveu muitos doen­tes; e depois de Deus ele foi grande meio por onde muitos homens convalesceram de graves enfermidades (...)
Hoje, 22 dias de Outubro de 1548.
Petrus Fernandus, Frei António do Casal Custos, Francisco, Frei João de Vila de Conde

Pintura goesa moderna a representar a morte de D. João de Castro

Êxitos missionários

Fr. João também averbou êxitos. O que vamos referir ter-lhe-á sido bem saboroso. Ocorreu no ano de 1556, quando baptizou 60.000 “pescadores caraias”, entre Colombo e Negombo. Não há dúvida que é obra. Só que...
Um estudioso singalês contemporâneo informa que tal aconteceu num período em que se instalou na zona um poder pró-lusitano. Ter-se-ia tratado de uma movimentação sócio-religiosa mais comum do que se poderia imaginar. Mas o mesmo estudioso pretende fazer-nos crer ainda que as coisas tiveram muito menor dimensão do que estes números sugerem. Que há neles enorme exagero – aliás seria comum nos relatórios dos missionários do tempo. E, cremos que também com um enorme exagero de sentido oposto, propõe que dos 60.000 recuemos para 3.000. Parece-nos descabido. Fr. João não actuava no meio do sertão brasileiro, mas numa terra bem conhecida. Um mínimo de bom-senso aconselhava a fazer contas mais rigorosas...

O baptismo de Darmapala e dos seus Grandes

No ano de 1557, Fr. João há-de ter tido outro dos momentos altos da sua vida de pregador do Evangelho: foi então que baptizou Darmapala e os seus Grandes. Darmapala, que afinal fora quem indirectamente o levara ao Ceilão, se bem se recorda. Fora para lhe assegurar o trono que seu avô, Buvaneca Báhu, imaginara o engodo de trazer missionários cristãos para o reino, 15 anos atrás. Se Darmapala dependia do poder português, e portanto podemos imaginar uma conduta de oportunismo, não se deve esquecer também que se trata duma pessoa que conhece de longa data a religião que se propõe abraçar e que por experiência sabe que nem sempre era de esperar muito do vice-rei e dos portugueses.
Nas povoações costeiras onde os Franciscanos evangeliza­vam, havia de se ter criado um ambiente novo de admiração e aceitação do cristianismo sobretudo entre os das classes superiores.
Igreja em Galle, cidade costeira do sul do Sri Lanka

Fr. João educador

Nesse mesmo ano de 1557, o Rei fez doação de todos os pagodes do reino com suas rendas para criação e mantença de seminários ou institutos de educação de crian­ças e jovens. No texto conhecido, que é o da ratificação feita em 1591, diz ele:

Houve por bem e aprouve fazer esmola e mercê aos ditos padres [Franciscanos], a instância e pedimento do P. Fr. João de Vila de Conde, guardião que foi do colégio da minha cidade de Cota, metropolitana e cabeça dos meus reinos e senhorios em tempo que a maior parte deles possuía, em cujas mãos fui feito cristão, fazendo-lhe a dita mercê dos pagodes e sítios de Calane, assim de uma como de outra banda, e do pagode de Dalade que foi igreja de S. Sal­vador dos ditos padres, e assim de todos os mais pagodes dos meus reinos e senhorios, com todas as suas rendas, terras, hortas, várzeas, foros, vassalagens, assim e da maneira que antes meus antecessores passados e eu, tudo o que dito é, tínha­mos dado aos mesmos pagodes, donde, tanto que houve o ver­dadeiro conhecimento, o renunciei e pus nos ditos colégios ao receber da água do santo baptismo.

O grande impulsionador destes colégios e da cristandade de Cota em geral foi Fr. João de Vila de Conde. No Arquivo da Torre do Tombo, conserva-se o seguinte apontamento que deve datar de 1559:

Frei João de Vila de Conde diz que à obra da Cristandade de Ceilão, que com a ajuda de Nosso Senhor vai em grande crescimento, são necessários Padres, porque não estão nela mais que seis.

Fr. João poeta

A vida no Ceilão, e mais concretamente em Cota e Sitavaca, vai continuar recheada de vilezas e violências — a que o nome de Fr. João nunca aparece ligado. Mas como a informação sobre ele se torna escassa, vejam-se as primeiras linhas desta carta do padre jesuíta Henrique Henriques, data­da de 1561. Nela nos aparece um Fr. João que se quer socorrer do canto para levar por diante a sua missionação. E para tal lança-se a escrever poesia religiosa.

Em Ceilão está um grande cantor malabar, já cristão, com quem um Padre de São Francisco, por nome Frei João de Vila do Conde, tem tirada mui singular doutrina em prosa e em maneira de cantigas que se cá costumam, e que se aprendem nas escolhas; e assim outras cantigas de louvor de Deus e da Virgem que se costumam a cantar, como entre nós os meninos órfãos cantam...
Folgaram muito os cristãos de ouvir tão boa doutrina e tão bem tiradas cantigas, as quais se cantam agora por toda esta povoação. Tiraram para dar aos cantores 50 cruzados, além do que certos mancebos de boa voz que aprenderam as mesmas cantigas e as cantam em algumas partes onde se ajuntam os cristãos; tem havido boa soma de dinheiro; são quatro ou cinco os que as cantam e somente destas cantigas se mantêm, e escreveu-me também o mesmo Padre Frei João que visse eu se estava bem. ...
A doutrina, depois de emendada, é mui excelente e digna de se imprimir, sobre o que escrevi ao provincial; respondeu que o irmão que podia fazer os caracteres estava mui mal e não para os poder fazer.

Carta de Darmapala

No mesmo ano de 1561 escreveu Darmapala uma carta à rainha viúva portuguesa, D. Catarina. Redigida certamente por um português, Darmapala suplica aí mais uma vez ajuda contra Maiadune (Madum) e faz o elogio de Fr. João. Ouçamos a primeira metade da missiva:

Senhora
Uma de V. A. recebi este ano, a 20 de Outubro, escrita a 15 de Março do ano de 60, em que diz acerca do Pe. meu Mestre Fr. João de Vila do Conde, que do que para ele pedia fizera lembrança a El-Rei, meu Senhor, pelo que beijo as Reais mãos de V. A. Ele nisso me fez assinada mercê, como ainda fará em lho tornar a lembrar, porque verdadeiramente que nenhum gosto levarei tamanho como vê-lo nesta terra com tal Dignidade, e por cima de tudo terei que S. A. me deseja honrar e a esta Cristandade, a que, louvores a N. Senhor, vai assás crescimento, ainda que não tanto como desejo por o Madum, nosso inimigo, estar tão poderoso como está (...)

... mas eu espero na Misericórdia de Deus que me há-de ajudar, pois sabe minha tenção e o muito que desejo ver Sua Santíssima Fé multiplicada, e porque na que escrevo a El-Rei, meu Senhor, digo mais largamente tudo o que ao presente se requer escrever-lhe, não digo mais, somente que se lembre do que peço a V. A. em minhas cartas, principalmente esta para o Padre meu Mestre, que eu e todos os desta terra temos em conta de Pai, pela tão sobeja virtude e bom exemplo que nos dá que parece que N. Senhor o escolheu para nesta terra fazer o que tem feito em louvor da Sua Santa Fé. Nosso Senhor seu real Estado acrescente, vida e saúde por longos anos.
Escrita na Cota, aos 23 de Dezembro de 561 – com o sinal de El-Rei de Ceilão.

A última notícia conhecida sobre Fr. João data de 1567 e afirma que ele trabalhava intensamente no Ceilão. Terá falecido na década seguinte, "muito velho" e "com fama de santidade". Está sepultado no Convento de Santo António de Cochim.

Conclusão

Fr. João é uma figura notável a muitos títulos. Contemporâneo de Camões, chegou dez anos antes do Épico ao Oriente. Como ele – melhor do que ele – conheceu os homens grandes e as obras gigantescas por eles lá realizadas. A sua determinação no relacionamento com o «coleante» Buvaneca Báhu impô-lo ao respeito dos pequenos reis locais, tornando depois mais viável a conversão dos populares e garantindo um apoio acrescido à causa lusa; a mesma determinação o conduziu ao relacionamento com D. João de Castro. Homem íntegro e decidido, não hesitou em arrostar com a viagem de vinda a Portugal e regresso para garantir a vitória da verdade e a protecção à cristandade do Ceilão.
Darmapala acabará por legar o seu trono ao rei português, tornando-se adiante o Ceilão, embora não na totalidade, colónia portuguesa; a nossa cultura teve lá penetração profunda. Em parte importante isto aconteceu por acção de Fr. João – que assim se tornou, além de dilatador da Fé, um não desprezável dilatador do Império.


TÁBUA CRONOLÓGICA

1480 (c.) – nasce Fr. João
1514 – conclusão da Matriz de Vila do Conde
1521 – assassínio do imperador do Ceilão pelos seus filhos
1522 – começa a obra do Convento da Encarnação (S. Francisco)
1542 – Pandita vem a Portugal e requer o envio de alguns franciscanos sábios
1543 – Fr. João parte para o Oriente. Debate das sete perguntas.
1544 – abandona o Ceilão; baptismo secreto do rei da Cande
1545 – Fr. João e S. Francisco Xavier voltam a Cota
1547 – Fr. João vai a Diu falar com D. João de Castro; cartas de Fr. João a D. João de Castro
1548 – assiste à morte do Governador; S. Francisco Xavier visita o Ceilão; carta do rei de Tanor
1549 – vem a Portugal informar o rei sobre a situação no Ceilão; baptismo secreto do rei de Tanor; cartas encomiásticas a respeito de Fr. João
1551 – Buvaneka Bahu é assassinado pelo servo de Noronha, António de Barcelos
1553 – Bandara, pai de Darmapala, destrói a feitoria e as igrejas de Colombo
1554 – Darmapala assume o poder em Cota
1555 – Fr. João de novo no Ceilão
1556 – baptiza "70.000 pescadores caraias de entre Colombo e Negombo" (ou terão sido apenas uns 3.000?)
1557 – baptiza Darmapala com seus Grandes
1561 – Darmapala louva Fr. João em carta a D. Catarina, viúva de D. João III
1567 – Fr. João trabalha intensamente no Ceilão – última notícia conhecida
1580 (c.) – morre Fr. João, "muito velho", "com fama de santidade" e é sepultado no Convento de Santo António de Cochim
1583 – Darmapala renuncia ao trono imperial em favor do rei de Portugal
Representação de Fr. João na escola que tem o seu nome, em Vila do Conde.

Bibliografia


LOPES, Fr. Fernando Félix – A Evangelização do Ceilão desde 1552 a 1602, Separata de Studia, n.os 20-22, 1967.
FITZLER, M. A. Hedwig – Os Tombos de Ceilão da Secção Ultramarina da Biblioteca Nacional, Publicações da Biblioteca nacional, Lisboa, 1927.
SCHURHAMMER, Georg – Francisco Javier: Su Vida y su Tiempo, 1992, Pamplona.
BOURDON, Léon - «Les débuts de l’Evangélisation de Ceilan vers le milieu du XVI siècle d’après les documents récemment publiés», in Bulletin des Études Portugaises, n.os 1-2, 1936.
MAURÍCIO, Domingos – «Portugal e S. Francisco Xavier», Brotéria, 55, 1952, pp. 455-482.
REGO, António da Silva – Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, Agência Geral das Colónias, Lisboa, 1951.
FERREIRA, José – Fr. João de Vila do Conde, Separata do Boletim Cultural da C.M. de Vila do Conde, 1995.

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